DE MODUS OPERANDI
MONTEIRO, THAISE. RFEDITORA, 2017
ISBN 978-85-66875-31-7
MUITOS DOS LIVROS
enfeitam as camadas da pele
Estante (s.f.) sequência vertical
de ossos da costela
que apoiam as carnes
que um dia serão lidas
NOTÍCIA
Menino
menino fuzilado nunca foi
nem nunca será um poema
não será poema toda a barbárie
que voa
atravessa a rua
quebra a vidraça
e descansa sobre a pena de poetas
palavras mortas de dicionário
Serão notícias não poemas
notícias amareladas presas entre os dentes
ruminadas dia após dia
Menino
menino fuzilado
e o choro irregular de suas negras mães
descem feito enxurrada
pelos becos pelos guetos
contidos impedidos enterrados
e fatalmente esquecidos
CAIXA
Difícil cumprir a sina
de escrever o que se sente
quando tudo é aperto
Escrever uma pequena caixa
dentro da qual retangularmente
me contorço e gemo
porque tudo é aperto
uma caixa sem sua alma
o sapato velho nunca usado
Ser uma caixa
um depósito de pequenas
lembranças e badulaques
sem serventia
Objetos-poesia numa caixa
como um maço
um box de 20 cigarros mentolados
com 4700 substâncias tóxicas
e nicotina
sua fumaça mórbida contendo
dependência física e psíquica
consumida num aperto
nessa enorme caixa redonda
onde segundo após segundo
se perde a vida
OUTRO DESEJO
Também não sou matrona
mãe de futuros homens
de bem e de família
sou é mulher de boteco
cheia de vontades e vícios
Faxino a casa em que habito
o banheiro em que defeco
lavo as roupas que visto
Não passo bem
quando sofro berro
e o sangue me salta aos olhos
cultivo flores sobre a pele
as dores do mundo me embargam a voz
mas canto
Quando cantar um livro com meu nome
vou levá-lo a uma zona
a um beco
a uma esquina
para mastigar os dissabores da vida
com a boca do ânus e da vagina
deslumbrante e determinada como uma puta
De À MODA DE 22
MONTEIRO, Thaise e BUARQUE, Jamesson
Patuá 2021
ISBN 978-65-5864-083-7
AVANT-GARD
Marchem à frente
o destino é a grande guerra
contra as regras herdadas de outro século
normas rígidas da ilógica lógica da razão
Libertem-se das pretéritas correntes
rumo ao sonho ao futuro e além
sigam firmes empurrando
com outras cores e formas
a arte para outras direções
a beleza agora é outra
o horror dos corpos em putrefação
Marchem à frente oh precursores
da terra arrasada
da estética da demolição
homens prédios espíritos des
fragmentados pela ponta de aço
de seus pinceis e canetas
nem toda guerra é vã
EXPERIMENTO SURREALISTA
A minha avó criava lesmas
nos cantos dos olhos
e cultivava muito sinos
no canteiro sem armadura
no fundo do quintal
Os sinos sopravam um cheiro
ocre de mangas podres
e badalavam três vultos
que se equilibravam sobre
os muros na hora do ângelus
Com suas guelras minha avó
flutuava pelos verdes
corredores da casa
resmungando tudo
que é qualidade de pedra
Passei a infância engolindo pedras
Dela nada herdei
nem mesmo essas nuvens
ressequidas sob as unhas
a não ser as lesmas
que certas noites choro
toda vez que minha avó
foge do retrato dos mortos
para habitar meus sonhos
ABAPORU
Do grupo dos cinco
com Anitta Oswáld Mário e Del Picchia
ela Tarsila do movimento canibalista
pintou retrato anti-humano de nossa gente
Pés e mãos desproporcionalmente
dizem do trabalho braçal
e a cabeça sem tamanho
retrato dos donos do dinheiro
e da elite intelectual
Deformado pela ruptura
afastado de sua própria
condição de humana
com seu grotesco traço-corpo
animalesca face
repousa os saberes do pé
na pátria de los Hermanos
NATUREZA MORTA SOBRE UM CANAL
Alguém apague esse fogo
fogo, Pagu
fogo dos peixes alastrado no canal
canal de um mar monótono
de um coração pregado
na parede feito um quadro
há algas, Pagu, e dedos parados
na mesma frase
nereidazinhas quase
verdes se fosse o caso
nada mais és que mulher
se julgando amada ao som
de uma triste valsa
poetas não morrem, Pagu
permanecem os jornais e as cartas
e essas mãos enterradas
no espaço branco de futuros versos
são corvos vertidos na fumaça salgada
do canal cheio da maré monótona
fogo coagulado nas ondas do mar.